Quarta-feira, 5 de Março de 2008

A IMORTALIDADE DA ALMA 1

Introdução.

Estão os Cristãos, como Cristãos, necessariamente comprometidos com a crença na imortalidade da alma humana? E o que significa realmente Imortalidade no universo Cristão de discurso? Essas questões não são de modo algum simplesmente retóricas. Etienne Gilson, em suas palestras Gifford, sentiu-se compelido a fazer a seguinte afirmação espantosa: "No todo," ele disse, "O Cristianismo sem Imortalidade da alma não é totalmente inconcebível, a prova é que ele foi concebido assim. O que é, ao contrário, absolutamente inconcebível, é o Cristianismo sem a Ressurreição do Homem." A característica surpreendente da história antiga da doutrina Cristã do Homem foi que muitos dos escritores mais importantes do século segundo parecem ter negado enfaticamente a (natural) imortalidade da alma. E isso não parece ter sido somente uma opinião excepcional e extravagante de certos escritores, mas sim o ensinamento comum da época. Nem essa convicção foi abandonada completamente em épocas posteriores. O Bispo Anders Nygren, em seu famoso livro, Den kristna karlekstanken genom tiderna, louva os Apologistas do segundo século precisamente por essa afirmação corajosa e vê nela a expressão do verdadeiro espírito Evangélico. A principal ênfase era então, como na opinião de Nygren deveria ser sempre, mais na "Ressurreição do corpo" do que na "Imortalidade da alma." Um erudito Anglicano do século XVII, Henry Dodwell (1641-1711, durante uma época "Preletor" de História na Universidade de Oxford), publicou em Londres um livro curioso, sob um título bastante embaraçoso:

Um Discurso Epistolar, provando , pelas Escrituras e pelos Santos Padres, que a Alma é um Princípio naturalmente Mortal: mas realmente imortalizada pelo Prazer de Deus, para Punição; ou para Recompensa, por sua União com o Divino Espírito Batismal. No que está provado que, ninguém tem o poder de dar esse Divino Espírito Imortalizador, desde os Apóstolos, que não sejam os Bispos (1706).

A argumentação de Dodwell era com freqüência confusa e envolvente. O maior valor do livro, no entanto, foi sua imensa erudição.Dodwell, provavelmente pela primeira vez, juntou uma enorme massa de informações da doutrina Cristã inicial sobre o Homem, mesmo que ele mesmo não tenha podido usá-la apropriadamente. E ele estava bastante certo em sua controvérsia de que o Cristianismo não estava preocupado com uma "Imortalidade" natural, mas sim com a Comunhão sobrenatural da alma com Deus. "Aquele que tem, Ele só a imortalidade" (1 Ti. 6:16). Não foi surpresa que o livro de Dodwell provocasse a violente controvérsia que provocou. Uma acusação formal de heresia foi feita contra o autor. Porém, ele encontrou alguns fervorosos apoiadores. E um escritor anônimo, "um Presbítero da Igreja da Inglaterra," publicou dois livros sobre o assunto, apresentando um cuidadoso estudo da evidência Patrística de que "o Espírito Santo era o Autor da Imortalidade, ou a Imortalidade era uma Graça Peculiar do Evangelho, e não um Ingrediente Natural da alma," e a "Imortalidade era preeternatural à Alma Humana, o Dom de Jesus Cristo, colocada pelo Espírito Santo no Batismo." O que foi de especial interesse na controvérsia foi que a tese de Dodwell foi atacada principalmente pelos "liberais" daqueles dias, e seu maior oponente literário foi o famoso Samuel Clarke, de Saint James, Westminster, um seguidor de Newton e correspondente de Leibniz, notório por suas crenças e idéias não-Ortodoxas, um típico homem da era do Latitudinarianismo e Iluminismo. Era uma visão não usual: "Imortalidade" contestada por um "Ortodoxo" e defendida por um Latitudinário. De fato, era bem o que se devia esperar. A crença em uma Imortalidade natural era um dos poucos "dogmas" básicos do Deismo iluminista daquele tempo. Um homem do Iluminismo podia facilmente descartar as doutrinas da Revelação, mas não toleraria nenhuma dúvida sobre a "verdade" da Razão.Gilson sugeriu que "o que é conhecido sob o nome de doutrina "Moralista" do século XVII foi originalmente um retorno à posição dos Primeiros Padres e não, como parece que normalmente se acredita,uma manifestação de um espírito libertino." Como posição geral, é insustentável. A situação toda no século XVII era muito mais complexa e confusa do que aparentemente Gilson suspeitou. Porém, no caso de Dodwell (e alguns outros) a conjectura de Gilson é inteiramente justificada. Houve um óbvio "retorno às posições dos Primeiros Padres."

 

A Alma como “Criatura.”

São Justino, em se Diálogo com Trypho, conta a história de sua conversão. Em sua procura pela verdade ele foi primeiro para os Filósofos, e por um tempo esteve totalmente satisfeito com o ensino dos Platonistas. "A percepção das coisas incorporais me envolveu bastante, e a teoria Platônica de idéias deu asas à minha mente. Então ele encontrou um professor Cristão, um homem idoso e respeitável. Entre as questões levantadas no curso de sua conversa estava a da natureza da alma. Nós não deveriamos chamar a alma de imortal, afirmou o Cristão. ‘Pois, se ela fosse, nós deveríamos chamá-la de não-gerada também’, i athanatos esti ke agennitos. Essa era, lógico, a tese dos Platonistas. Porém, Só Deus é "não-gerado" e imortal, e é por essa razão que Ele é Divino. O mundo, de outro lado, é "criado" e as almas fazem parte dele. "Talvez, tenha havido um tempo em que elas não estavam em existência." E por isso elas não são imortais, "já que o mundo pareceu para nós ter sido criado." A alma não é vida de per si, mas somente "partilha" da vida. Deus somente é vida, a alma não pode mais do que ter vida. "Pois o poder de vida não é um atributo da alma, como é de Deus." Além disso, Deus da vida às almas, "conforme Lhe agrade." Todas as coisas criadas "têm a natureza decaída, e são de um modo que podem ser apagadas e deixarem de existir." Criaturas como tais são "corruptíveis" (Dial. 5 e 6)."

As principais provas clássicas de imortalidade, derivadas de Phaedo e Phaedrus, são negadas e recusadas, e suas pressuposições básicas são abertamente rejeitadas. Como o Professor A.E.Taylor apontou. "para a mente grega athanasia ou aftharsia significavam regularmente quase a mesma coisa que "divindade" e incluíam o conceito de não-generabilidade assim como o de indestrutibilidade. Dizer para o grego "a alma é imortal" seria a mesma coisa que dizer "ela é incriada," isto é, eterna e "divina." Tudo que teve um começo estava obrigado a ter um fim. Em outras palavras,para um grego, a "imortalidade da alma" imediatamente implicaria em sua "eternidade," isto é, uma "pré-existência" eterna. Só o que não tivesse começo poderia durar para sempre. Os Cristãos não poderiam compactuar com essa assunção "filosófica," já que eles acreditavam em Criação, e vai dai, eles tinham que negar a "imortalidade" (no sentido grego da palavra). A alma não é um ser independente ou auto-governado, mas precisamente uma criatura, que deve sua própria existência a Deus, o Criador. Conseqüentemente, ela não pode ser "imortal" por natureza, isto é, por si própria, mas somente por "prazer de Deus," isto é, por graça. O argumento "filosófico" para a imortalidade "natural" foi baseado na "necessidade" da existência.

Ao contrário, dizer que o mundo é "criado" é enfatizar, em primeiro lugar, sua radical contingência, e precisamente — uma contingência na ordem da existência. Em outras palavras, um mundo criado é um mundo que poderia não ter existido de todo. Isso quer dizer que o mundo é,completa e inteiramente, ab alio, e em nenhum sentido a se. Como Gilson coloca, "há alguns seres que são radicalmente diferentes de Deus ao menos porque, diferente Dele, eles poderiam não ter existido, e ainda podem, num certo momento,cessar de existir." "Poder cessar," no entanto, não significa necessariamente, "cessará (realmente)" São Justino não era um "condicionalista," e seu nome foi invocado pelos defensores de uma "imortalidade condicional" em vão. "Eu não digo, seguramente, que todas as almas morrem." O argumento todo era polêmico, e seu propósito era reforçar a crença na Criação. Nós encontramos o mesmo raciocínio em outros escritos do século segundo. Sã Teófilo de Antioquia insistiu no caráter "neutro" do Homem. "Por natureza" o Homem não é nem "imortal" nem "mortal," mas "capaz de ser os dois," dektikon amfoteron. "Pois se Deus tivesse feito o homem imortal do começo, Ele teria feito ele Deus." Se o homem desde o começo tivesse escolhido coisas imortais, em obediência aos comandos de Deus, ele teria sido recompensado com imortalidade e teria se tornado Deus, "um Deus adotivo" deus assumptus, Theos anadihthis (Ad Autolycum II, 24 e 27).

Taciano foi ainda mais longe. "A alma não é imortal em si, ó gregos, mas mortal. Entretanto é possível para ela não morrer" (Oratio ad Graecos, 13). O pensamento dos primeiros Apologistas não estava livre de contradições, nem era sempre expresso acuradamente. Mas o ponto principal estava sempre claro: o problema da imortalidade humana tinha que ser encarado no contexto da doutrina da Criação Pode-se dizer também: não somente como um problema metafísico, mas também e antes de tudo, como um problema religioso. "Imortalidade" não é um atributo da alma, mas alguma coisa que no fim depende da real relação do homem com Deus, seu Mestre e Criador. Não só o destino definitivo do homem só pode ser adquirido em comunhão com Deus, como até a própria existência do homem e sua "sobrevivência" ou continuação dependem da vontade de Deus. Santo Irineu continuou a mesma tradição. Em sua luta contra os Gnósticos ele tinha um motivo especial para enfatizar o caráter de criatura da alma. Ela não veio de "outro mundo," isenta de corrupção; ela pertence precisamente a esse mundo criado.

Foi afirmado, diz Santo Irineu, que para as almas estarem em existência elas tinham que ser "não-geradas" (sed oportere eas aut innascibiles esse ut sint immortales), pois de outra forma elas teriam que morrer com o corpo (vel si generationis initium acceperint, cum corpore mori). Ele dispensa esse argumento. Como criaturas, as almas "duram tanto quanto Deus quiser que elas durem" (perseverant autem quoadusque eas Deus et esse, et perseverare voluerit). Perseverança aqui obviamente corresponde ao grego:diamoni, Santo Irineu usa quase as mesmas frases que as de São Justino.

A alma não é vida per si; ela participa da vida, pela concessão de Deus (sic et anima quidem non est vita, participatur autem a Deo sibi praestitam vitam). Só Deus é Vida e o único Doador de Vida (Adversus haereses II, 34) Até Clemente de Alexandria, apesar de seu Platonismo, lembrava ocasionalmente que a alma não era imortal "por natureza" (Adumbrationes em I Petri 1:9: hinc apparet quoniam non est naturaliter anima incorruptibilis, sed gartia Dei ... perficitur incorruptibilis).

Santo Atanásio demonstraria a imortalidade da alma por argumentos que podem ser rastreados até Platão (Adv. Gentes, 33), e ele ainda insistiu com força no fato de que tudo que é criado é "por natureza" instável e sujeito a destruição (ibidem, 41; fysin revstin usan ke dialyomeni). Mesmo Santo Agostinho estava consciente da necessidade de qualificar a imortalidade da alma: Anima hominis immortalis est secundum quendam modum suum; non enim omni modo sicut Deus (Epist. VFF, ad Hieronymum). "De acordo com a mutabilidade dessa vida, pode ser dito ser ela mortal" (Em Jo., tr. 23, 9; cf. De Trinitate, 19.15, e De Civ. Dei, 19.3: mortalis in quantum mutabilis). São João Damasceno diz que até os Anjos são imortais não por natureza, mas somente pela graça (De fide orth. II, 3; u fysi alla hariti), e prova isso mais ou menos da mesma forma que os Apologistas (Dial. c. Manich.,21). Nós encontramos a mesma afirmação enfática na carta "sinódica" de São Sofrônio, o Patriarca de Jerusalém (634), que foi lida e recebida favoravelmente no Sexto Concílio Ecumênico (681). Na parte final de sua carta Sofrônio condena os erros dos Origenístas, a pré-existência da alma e apokatastasis, e coloca claramente que "seres intelectuais" (ta noita), apesar de não morrerem (thniski de udemos), mesmo assim "não são imortais por natureza," mas somente pela graça de Deus (Mansi, XI, 490-492; Migne, 87.3, 3181). Deve ser acrescentado que mesmo no século XVII essa tradição inicial não foi esquecida no Oriente, e nós temos um relato contemporâneo interessante de uma disputa entre dois Bispos gregos de Creta exatamente sobre essa questão: se a alma era imortal "por natureza" ou "por graça."

Devemos concluir: Quando discutimos o problema da imortalidade de um ponto-de-vista Cristão, devemos manter em mente a natureza de criatura da alma. A própria existência da alma é contingente, isto é, como se fosse, "condicional." É condicionada pelo criativo fiat de Deus. Porém, uma existência dada, isto é, uma existência que não está necessariamente implicada na "essência," não é necessariamente transiente. O criativo fiat é um ato livre mas definitivo de Deus. Deus criou o mundo simplesmente para existência: (ektise gar is to ine ta panda Sabed. 1: 14). Não há previsão quanto à revogação desse decreto criativo. A ponta dessa antinomia está exatamente aqui: o mundo teve um começo contingente, porém sem fim. Ele permanece pela vontade imutável de Deus.

 

O Homem é Mortal.

No pensamento corrente de hoje em dia, a "imortalidade da alma" é normalmente super enfatizada de tal forma que a básica "mortalidade do homem" é quase olhada muito por cima. Somente nas recentes filosofias "existencialistas" nós fomos de novo lembrados com força que a existência do homem está intrinsecamente sub species mortis. A morte é uma catástrofe para o homem. Ela é seu "último(ou melhor,definitivo) inimigo," eshatos ehtros (1 Co. 15:26). "Imortalidade" é obviamente um termo negativo; é correlativo com o termo "morte." E aqui novamente nós encontramos o Cristianismo em um conflito aberto e radical com o "Helenismo," antes de tudo, com o Platonismo. W.H.V.Reade, em seu recente livro, The Christian Challenge to Philosophy, confrontou com competência duas citações: "E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós" (Jo. 1:14) e "Plotinus, o filósofo de nosso tempo, era como alguém envergonhado de estar na carne" (Porfírio, Life of Plotinus, I). Reade então prossegue: "Quando a mensagem do Dia de Natal e o breve sumário de Porfírio do credo de seu mestre são postos em comparação direta, fica claro o suficiente que eles são incompatíveis totalmente: que nenhum Cristão pode ser Platonista, nem nenhum Platonista pode ser Cristão; e para fazer justiça aos Platonistas, deve-se dizer que desse fato elementar eles estavam perfeitamente cientes." Eu só acrescentaria que, infelizmente, Cristãos parecem não estar cientes desse "fato elementar."

Através de séculos, até o nosso tempo, o Platonismo tem sido a filosofia favorita de sábios Cristãos. Não é nosso propósito agora explicar como isso pode acontecer. Mas esse infeliz malentendido (para não dizer mais) resultou em uma grande confusão no pensamento moderno sobre morte e imortalidade. Nós ainda podemos usar a antiga definição de morte: é uma separação do corpo e da alma, psyhi horismos apo thomatos (Nemesius, De natura hominis, 2; ele cita Chrysippus). Para os gregos era uma liberação, um "retorno" para a esfera nativa dos espíritos. Para os Cristãos era a catástrofe, uma frustração da existência humana. A doutrina grega da imortalidade nunca poderia resolver o problema Cristão. A única solução adequada foi oferecida pela mensagem da Ressurreição de Cristo e pela promessa da Ressurreição Geral dos mortos. Se nós nos voltamos novamente para a antigüidade Cristã, nós encontramos esse ponto feito claramente em data muito cedo. São Justino era bastante enfático nesse ponto. "As pessoas que dizem que não há ressurreição da morte, e que suas almas, quando elas morrem, são levadas para o céu, não são Cristãs de todo" (Dialog 80).

O autor desconhecido do tratado Sobre Ressurreição (tradicionalmente atribuído a São Justino) coloca o problema com muita exatidão. "O que é o homem senão um animal racional composto de corpo e alma? É a alma por si só o homem? Não, mas só a alma do homem. Seria o corpo chamado de homem? Não, ele é chamado o corpo do homem. Se nenhum dos dois casos é o homem, mas só aquele que é feito das duas partes juntas é chamado homem, Deus chamou homem à vida e ressurreição, Ele chamou não uma parte, mas o todo, que é corpo e alma" (On Ressur. 8). Atenágoras de Atenas desenvolveu o mesmo argumento em seu admirável tratado On the Ressurrection of the Dead. Deus criou o homem com um propósito definido, para existência perpétua. Porém, "Deus deu ser independente e vida não para a natureza da alma em si, nem para a natureza do corpo separadamente, mas sim para os homens, compostos de alma e corpo, de modo que com essas mesmas partes com que eles são compostos quando nascem e vivem, eles deverão atingir depois da terminação de suas vidas seus fins comuns; alma e corpo compõem no homem uma entidade viva." Não seria mais homem, Atenágoras argumenta, se a perfeição dessa estrutura fosse quebrada, pois então a identidade do individuo também seria quebrada. A estabilidade do corpo, sua continuidade em sua própria natureza, deve corresponder à imortalidade da alma. "A entidade que recebe intelecto e razão é o homem, e não a alma sozinha. Conseqüentemente, o homem deve permanecer para sempre composto de corpo e alma." De outra forma não haveria homem, mas só partes de homem. "E isso é impossível, se não há ressurreição. "Pois se não há ressurreição, a natureza dos homens como homens não continuaria" (15).

A pressuposição básica do argumento todo é que o corpo intrinsecamente pertence á totalidade da existência humana. E por isso o homem, como homem, cessaria de existir, se a alma tivesse que permanecer para sempre "desencorpada." è precisamente o oposto do que os Platonistas afirmam. Os gregos sonhavam mais com uma completa e definitiva desencarnação. Um incorporamento era justamente um cativeiro para a alma. Para os Cristãos, de outro lado, a morte não era um fim normal da existência humana. A morte do homem era subnormal, era uma falha. A morte do homem é "o salário do pecado" (Ro. 6:23). É uma perda e corrupção. E desde a Queda o mistério da vida é deslocado pelo mistério da morte. Misteriosa como a "união" da alma e do corpo de fato é, a consciência imediata do homem testemunha a totalidade orgânica de sua estrutura psicofísica. Anima autemet spiritus pars hominis esse possunt, homo autem nequaquam, disse Santo. Irineu (Adv. haereses V, 6.1). Um corpo sem uma alma não é mais do que um cadáver e uma alma sem corpo é um fantasma. O homem não é um fantasma sem corpo, e um cadáver não é uma parte do homem. O homem não é um "demônio sem corpo," simplesmente confinado na prisão do corpo. Eis porque a "separação" do corpo e da alma é a morte do homem em si, a descontinuação de sua existência, de sua existência como homem. Conseqüentemente a morte e a corrupção do corpo são uma espécie de apagamento da "imagem de Deus" no homem. Um homem morto não é completamente humano.

São João Damasceno, em uma de suas gloriosas antífonas no Ofício Funerário, fala disso: "Eu choro e lamento, quando eu contemplo a morte, e vejo nossa beleza, feita segundo a imagem de Deus, jazendo no túmulo desfigurada, desonrada, despojada de forma." São João fala não do corpo do homem, mas do homem em si. "Nossa beleza na imagem de Deus" não é a do corpo, mas a do homem. Ele é, na verdade "uma imagem da insondável glória de Deus," mesmo estando "ferido pelo pecado." E na morte, é revelado que o homem, essa "razoável imagem" feita por Deus, para usar a frase de São Metódio (De resurrectione I, 34.4: to agalma to logikon), não é mais do que um cadáver. "O homem não é mais do que ossos secos, um mau cheiro e comida de vermes." Pode-se falar do homem como sendo "uma hipóstase em duas naturezas," e não só de, mas precisamente em duas naturezas. E na morte essa hipóstase humana é quebrada. E não há mais homem. E por isso o homem espera pela "redenção de nosso corpo" (Ro. 8:23; tin apolitrosin tu somatos imon). Como São Paulo diz em outro lugar, não porque queremos ser despidos, mas revestidos, para que o mortal seja absorvido pela vida (2Co. 5:4). O aguilhão da morte está exatamente no que são "os salários do pecado," isto é, na conseqüência de uma relação distorcida com Deus. Não é só uma imperfeição natural, nem é simplesmente uma paralisação metafísica. A mortalidade do homem reflete o estranhamento de Deus pelo homem, por Ele Que é o único Doador de Vida. E, nesse estranhamento por Deus, o Homem simplesmente não pode "resistir" como homem, não pode permanecer completamente humano.

O estado de mortalidade é essencialmente "subhumano." Enfatizar a mortalidade humana não significa oferecer uma interpretação "naturalística" da tragédia humana, mas, ao contrário, mas significa marcar o predicado do homem até sua raiz religiosa definitiva. A força da teologia Patrística estava exatamente em seu interesse pela mortalidade humana, e em conseqüência na mensagem da Ressurreição. A miséria da existência pecaminosa não foi de maneira nenhuma subestimada, mas foi interpretada não só nas categorias éticas e moralísticas, mas também nas teológicas. A carga do pecado consistia não só nas auto-acusações da consciência humana, não só na consciência de culpa, mas na completa desintegração da estrutura toda da natureza humana. O homem decaído não era mais homem, ele estava existencialmente "degradado." E o sinal dessa "degradação" era a imortalidade do Homem, a morte do Homem. Na separação de Deus a natureza humana se torna perturbada, sai fora de tom. A própria estrutura do homem torna-se instável. A "união" da alma com o corpo torna-se insegura. A alma perde seu poder vital,não é mais capaz de vivificar o corpo.E a morte física torna-se inevitável. O corpo e a alma não estão mais seguras e ajustadas um à outra.

As transgressões dos mandamentos Divinos "reintegra o homem no estado da natureza," como Santo Atanásio coloca, — is to kata fysin epestrepsen. "Como ele foi feito do nada, assim também em sua própria existência no tempo apropriado ele sofreu corrupção, de acordo com toda justiça." Pois, sendo feito do nada, a criatura também existe sobre um abismo de nulidade, até pronta para cair nele ( de Incarnatione, 4 e 5) "Porque certamente morreremos, e seremos como águas derramadas na terra que não se ajuntam mais" (II Sam. 14:14). "O estado da natureza," do qual fala Santo Agostinho, é a moção cíclica do Cosmos, na qual o homem decaído é enredado sem esperança, e esse enredamento significa a degradação do homem. Ele perde sua posição privilegiada na ordem da Criação. Mas essa catástrofe metafísica é só uma manifestação da relação quebrada com Deus.

 

"Eu sou a Ressurreição

e a Vida.

A Encarnação do Verbo foi uma manifestação absoluta de Deus. E acima de tudo ela foi uma revelação de Vida. Cristo é a Palavra da Vida, o Logos tis zois (I Jo. 1:1). A Encarnação em si, foi num sentido, a vivificação do homem, como se fosse a ressurreição da natureza humana. Na Encarnação a natureza humana não foi simplesmente ungida com um superabundante fluxo de Graça, mas foi também assumida numa íntima e "hipostática" união com a própria Divindade. Nessa elevação da natureza humana para uma perene comunhão com a Vida Divina, os Padres da Igreja primitiva, unanimemente viram a própria essência da salvação. "Aquele que é salvo é o que está unido com Deus," diz São Gregório de Nazianzo. E o que não estava tão unido não poderia ser salvo de todo (epist. 101, ad Cledonium). Esse era o motivo fundamental em toda teologia inicial, em Santo Irineu, em Santo Atanásio, nos Capadócios, em São Cirilo de Alexandria, e são Máximo Confessor. Porém o clímax da Vida Encarnada foi a Cruz, a morte do Senhor Encarnado. A Vida foi revelada, no todo, pela morte. Esse é um mistério paradoxal da fé Cristã: vida através da morte, vida vinda do túmulo, e de fora do túmulo, o mistério do túmulo portador-de-vida. E os Cristãos nascem de novo para a vida real e perene somente através da sua morte e sepultamento batismal em Cristo; eles são regenerados com Cristo na fonte batismal (cf. Ro.6:3-5).

Essa é a invariável lei da verdadeira vida. "O que tu semeias não é vivificado, se primeiro não morrer" (1 Co. 15:36). A salvação foi completada no Gólgota, não no Tabor, e a Cruz de Jesus foi falada antes no Tabor (cf. Lc.9:31). Cristo tinha que morrer, para conceder uma vida abundante para toda humanidade. Não era a necessidade desse mundo. Era, como se fosse, a necessidade do Amor Divino, a necessidade de uma ordem Divina. E nós falhamos em compreender o mistério. Porque teve a verdadeira vida que ser revelada através da morte do Único, Que era Ele próprio "a Ressurreição e a Vida"? A única resposta é que a Salvação tinha que ser uma vitória sobre a morte e mortalidade do homem. O inimigo definitivo do homem era exatamente a morte. A Redenção não era simplesmente o perdão dos pecados, nem era a reconciliação do homem com Deus. Era a libertação do pecado e da morte. "A penitência não libera do estado da natureza (no qual o homem caiu através do pecado), ela só descontinua o pecado," diz santo Atanásio. Pois o homem não só pecou mas "caiu na corrupção." Porém, a misericórdia de Deus não podia permitir "que criaturas que uma vez, tinham sido feitas racionais, e que tinham participado do Verbo, fossem para a ruína e se virassem novamente para a não-existência por conta da corrupção." Conseqüentemente o Verbo de Deus desceu e Se fez homem, assumindo o nosso corpo, "que, quando de fato o homem se virar para a corrupção, ele possa se virar de novo para a incorrupção, e vivificar-se da morte pela apropriação de seu corpo e pela graça da Ressurreição, banindo de si a morte como se fosse palha tirada do fogo." (De Incarnatione, 6-8).


publicado por igrejacatolicaortodoxa às 13:58
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